São Bernardo
NOTÍCIAS

O que é, afinal, o Fair Play Financeiro no futebol?

Campinas, SP, 04 (AFI) – Nas últimas semanas, declarações de dirigentes do futebol brasileiro sobre o chamado fair play financeiro chamaram atenção. Muitas delas, no entanto, revelaram desconhecimento sobre o tema: confundiram limites de investimento com teto salarial, falaram em “restrição de gastos de empresários” e até em “igualdade forçada entre clubes”. Mas, afinal, o que é de fato o fair play financeiro, por que ele foi criado e como funciona?

Origem e objetivo

fair play financeiro surgiu oficialmente em 2011, implantado pela UEFA (União das Associações Europeias de Futebol), em um contexto em que diversos clubes do continente acumulavam dívidas astronômicas, atrasavam salários e chegavam a entrar em falência. O caso mais emblemático foi o de equipes tradicionais que, mesmo conquistando títulos, não conseguiam se manter sustentáveis fora de campo.

O objetivo nunca foi “nivelar clubes ricos e pobres” nem “impedir grandes investimentos”, mas sim garantir que cada time gaste apenas aquilo que é capaz de gerar de receita. Em outras palavras, proteger a saúde financeira do futebol europeu, coibir aventuras de dirigentes e assegurar maior transparência.

Como funciona na prática

O regulamento básico é simples: um clube não pode gastar sistematicamente mais do que arrecada. Para isso, as receitas levadas em conta incluem bilheteria, cotas de TV, patrocínios, venda de atletas e receitas comerciais. Já nas despesas entram salários, contratações, custos de operação e dívidas.

Há uma margem de tolerância, chamada de “déficit aceitável”. Durante a primeira versão do regulamento da UEFA, por exemplo, clubes podiam acumular até € 5 milhões de prejuízo por temporada, ou até € 30 milhões em três anos, desde que esse déficit fosse coberto por aportes dos donos devidamente comprovados. Ou seja: investimento é permitido, desde que não descontrole as contas e seja justificado de forma transparente.

Além disso, o fair play exige transparência contábil. Os clubes devem apresentar balanços auditados, demonstrar origem das receitas e comprovar capacidade de pagamento de dívidas de curto prazo.

Exemplos práticos na Europa

Alguns casos famosos mostram como o regulamento funciona na prática:

  • Manchester City (Inglaterra): foi punido em 2014 com multa de € 60 milhões (reduzida depois), limitação de elenco na Champions e restrições no mercado de transferências, após ter descumprido o regulamento. Em 2020, chegou a ser banido por duas temporadas das competições da UEFA, mas a punição foi anulada pelo CAS (Corte Arbitral do Esporte) por falta de provas robustas.
  • Paris Saint-Germain (França): também foi alvo de investigação após contratações bilionárias, como a de Neymar e Mbappé, que levantaram dúvidas sobre contratos de patrocínio inflados. A UEFA acabou fechando acordo de monitoramento.
  • Málaga (Espanha): chegou a ser banido da Liga Europa por não comprovar pagamento de salários e dívidas. O caso é considerado um exemplo clássico do efeito prático do fair play financeiro.

Esses episódios mostram que o sistema não impede que um clube rico invista alto, mas exige que prove capacidade real de honrar seus compromissos.

O que não é fair play financeiro

Um equívoco comum no Brasil é associar o fair play financeiro a medidas como teto salarial ou limite de contratações. Não se trata disso. O regulamento europeu não define quanto cada jogador pode ganhar, nem impede que um clube contrate determinado número de atletas. O que existe é o princípio da responsabilidade fiscal: gastar de acordo com o que se arrecada.

Outro ponto: o fair play não é uma ferramenta para “nivelar” clubes em termos esportivos. Ele não busca aproximar receitas de Flamengo e Cuiabá, por exemplo. O que faz é tentar garantir que o Flamengo só gaste aquilo que realmente tem, e que o Cuiabá também não comprometa sua existência gastando além da conta.

E no Brasil?

O Brasil ainda não possui um sistema de fair play financeiro robusto. A CBF chegou a discutir modelos, mas até hoje não implementou nada parecido com o da UEFA. O que existe são regras pontuais, como a exigência de certidões negativas para registro de contratos ou algumas tentativas de controle da dívida dos clubes.

Com a chegada das SAFs (Sociedades Anônimas do Futebol), o debate voltou à tona. No entanto, quando dirigentes brasileiros falam em fair play financeiro, muitas vezes confundem conceitos ou tentam usar o termo como argumento político para limitar rivais.

Se aplicado corretamente, o fair play poderia ajudar o futebol brasileiro a evitar colapsos financeiros, como os de clubes que gastaram além do que podiam e entraram em crises prolongadas, a exemplo de Cruzeiro, Vasco e Botafogo antes da transformação em SAF.

Um caminho de sustentabilidade

O fair play financeiro não é perfeito e, inclusive, já recebeu críticas na Europa por “proteger” clubes gigantes que têm receitas naturalmente maiores. Mas, ainda assim, trouxe um nível de controle e responsabilidade inexistente antes de 2011.

Para o Brasil, onde a saúde financeira dos clubes é historicamente frágil, compreender de fato o que é o fair play financeiro é fundamental. Mais do que um discurso para a arquibancada, trata-se de um mecanismo que pode assegurar que as vitórias dentro de campo não sejam anuladas por derrotas na contabilidade.